Assis Lima
Assis Lima

PADARIA ESPIRITUAL PRECURSORA DAS ACADEMIAS

 

 

 

 Café Java, no canto Nordeste da Praça do Ferreira

Nasceu a Padaria Espiritual

 

Fortaleza, final do Século XIX.

Durante seis anos, uma sociedade de “rapazes de Letras e Artes” daria o que falar. Bem-humorados, ousados, sobretudo talentosos, os membros da PADARIA ESPIRITUAL protagonizaram, no antagônico recém criado Estado, um movimento literário modernista que antecedeu em muitos anos a Semana de Arte Moderna e seria um destaque histórico, fomentando os que estudam a Literatura Brasileira. Escasso são os relatos sobre o que foi a Padaria, como atuavam os padeiros, quais eram seus postulados e como os traduziam no O Pão, jornalzinho de oito páginas, que circularia até o nº 36, deixando um rastro de irreverência notória.

 

 

Os “padeiros” assinavam seus textos com pseudônimos, o que geralmente chocava as pessoas, pois muitos dos pseudônimos remetiam a elementos nacionais e/ou regionais, uma forma de criticar o academicismo presente nas associações literárias de até então.

 

Poeta Antonio Sales

 

 

Antônio Sales, considerado o idealizador da Padaria Espiritual, foi Moacir Jurema, Adolfo Caminha foi Félix Guanabarino, Jovino Guedes foi Venceslau Tupiniquim, Lívio Barreto foi Lucas Bizarro, entre outros “rapazes de letras e artes”, isto é, integrantes da Padaria Espiritual que adotaram pseudônimos considerados ousados, naquele contexto.

Um dos principais objetivos do grupo era promover o gosto pela literatura na sociedade, isto é, estabelecer uma sociedade literária (renovada, original) em seu tempo, considerando a apatia literária da sociedade cearense da época.

 

 

 

O escritor Antônio Sales, ao redigir o Programa de Instalação da Padaria Espiritual, espécie de estatuto, composto de 48 itens, acerca das premissas e propostas da padaria, foi responsável pela construção de uma estrutura para ”legitimar” o movimento.

O estatuto foi lido pela primeira vez na inauguração da agremiação literária, no dia 30 de maio de 1892, no Café Java, na Praça do Ferreira, em Fortaleza.

 

 

 

A Padaria Espiritual foi uma das mais singulares agremiações culturais tanto do Ceará como do Brasil. Por ela passaram escritores que ajudaram a compor parte significativa da atividade artística e da imprensa na província cearense. O intuito de seus idealizadores era despertar, na sociedade, o gosto pela arte.

Como já havia precedentes de sociedades artísticas, muitas delas de caráter formal e retórico, decidiram produzir algo original e até mesmo escandaloso, que repercutisse no gosto do povo. Antônio Sales redigiu seu programa de instalação e foi um dos principais responsáveis pela publicação do jornal da agremiação, O Pão. A Padaria Espiritual não era uma sociedade exclusivamente das Letras, mas das artes em geral, pois o grêmio contou tanto com prosadores e poetas, quanto com pintores, desenhistas e músicos.

 

 

Diferente mocidade Cearense comprometida com os interesses econômicos dos emergentes setores urbanos e de estreita ligação com as tradicionais oligarquias rurais, o grupo dos padeiros, oriundo dos Novos do Ceará diferente do arsenal teórico científico pautado nas ideias positivas e evolutivas iria propor um novo projeto literário baseado nos valores e hábitos do
“tipo” campestre, heroico e valente. O movimento literário e artístico dos artistas padeiros
seria uma “cousa nova”, fugindo, pois, das formalidades científicas e bacharelescas dos tantos
outros movimentos acontecidos anteriormente. De forte caráter boêmio e pilhérica o movimento dos padeiros causou “escândalo” numa pacata e provinciana Fortaleza de então, acostumada à seca, à pilheria e ao aluá.

Manuel Coco proprietário do Café Java, lamentou e muito vendo Fortaleza entrar no século XX, ficando para trás, dois anos a Padaria Espiritual.

Funcionamento da Padaria:

“Um Padeiro Mor”; “Dois Forneiros”; “Um Gaveta”; “Um Guarda Livros”; “Um Investigador”; e os demais eram “Amassadores”. A sede da Padaria era chamada de Forno e a cada reunião era chamada de “Fornada”.

 

 

 

ESTATUTO DA PADARIA ESPIRITUAL

            Eis os Estatuto da Padaria Espiritual, movimento pioneiro no Ceará — terra de José de Alencar — e precursor das academias de letras em terras brasileiras. Movimento modernista, ainda hoje atual, com 40 anos de antecedência à Semana de Arte de 1922.

1) Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da “Terra da Luz”, antigo Siará Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.

 

2) A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mór (presidente), de dois Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes, que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os sócios terão a denominação geral de Padeiros.

 

3) Fica limitado em vinte o número de sócios, inclusive a Diretoria, podendo-se, porém, admitir sócios honorários que se denominarão Padeiros-livres.

 

4) Depois da instalação da Padaria, só será admitido quem exibir uma peça literária ou qualquer outro trabalho artístico que for julgado decente pela maioria.

 

5) Haverá um livro especial para registrar-se o nome comum e o nome de guerra da cada Padeiro, sua naturalidade, estado, filiação e profissão a fim de poupar-se à Posteridade o trabalho dessas indagações.

 

6) Todos os Padeiros terão um nome de guerra único, pelo qual serão tratados e do qual poderão usar no exercício de suas árduas e humanitárias funções.

 

7) O distintivo da Padaria Espiritual será uma haste de trigo cruzada de uma pena, distintivo que será gravado na respectiva bandeira, que terá as cores nacionais.

 

8) As fornadas (sessões) se realizarão diariamente, à noite, à excepção das quintas-feiras, e aos domingos, ao meio-dia.

 

9) Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou estrangeira e falarão sobre as obras que lerem.

 

10) Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas e literatos, a começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista, na qual serão designados, com a precisa antecedência, o dissertador e a vítima. Também se farão dissertações sobre datas nacionais ou estrangeiras.

 

11) Essas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob pena de vaia.

 

12) Haverá um livro em que se registrará o resultado das fornadas com o maior laconismo possível, assinando todos os Padeiros presentes.

 

13) As despesas necessárias serão feitas mediante finta passada pelo Gaveta, que apresentará conta do dinheiro recebido e despendido.

 

14) E proibido o uso de palavras estranhas à língua vernácula, sendo, porém, permitido o emprego dos neologismos do Dr. Castro Lopes.

 

15) Os Padeiros serão obrigados a comparecer à fornada, de flor à lapela, qualquer que seja a flor, com excepção da de chichá.

 

16) Aquele que durante uma sessão não disser uma pilhéria de espírito, pelo menos, fica obrigado a pagar no sábado café para todos os colegas. Quem disser uma pilhéria superiormente fina, pode ser dispensado da multa da semana seguinte.

 

17) O Padeiro que for pegado em flagrante delito de plagio, falado ou escrito, pagará café e charutos para todos os colegas.

 

18) Todos os Padeiros serão obrigados a defender seus colegas da agressão de qualquer cidadão ignáro e a trabalhar, com todas as forças, pelo bem estar mútuo.

19) É proibido fazer qualquer referência à rosa de Maiherbe e escrever nas folhas mais ou menos perfumadas dos álbuns.

 

20) Durante as fornadas, é permitido ter o chapéu na cabeça, exceto quando se falar em Homero, Shakespeare, Dante, Hugo, Goethe, Camões e José de Alencar porque, então, todos se descobrirão.

 

21) Será julgada indigna de publicidade qualquer peça literária em que se falar de animais ou plantas estranhos à Fauna e à Flora brasileiras, como: cotovia, olmeiro, rouxinol, carvalho etc.

 

22) Será dada a alcunha de “medonho” a todo sujeito que atentar publicamente contra o bom senso e o bom gosto artísticos.

 

23) Será preferível que os poetas da “Padaria” externem suas idéias em versos.

 

24) Trabalhar-se-á por organizar uma biblioteca, empregando-se para isso todos os meios lícitos e ilícitos.

 

25) Dirigir-se-á um apelo a todos os jornais do mundo, solicitando a remessa dos mesmos à biblioteca da “Padaria”.

 

26) São considerados, desde já, inimigos naturais dos Padeiros – o Clero, os alfaiates e a polícia. Nenhum Padeiro deve perder ocasião de patentear seu desagrado a essa gente.

 

27) Será registrado o fato de aparecer algum Padeiro com colarinho de nitidez e alvura contestáveis.

  28) Será punido com expulsão imediata e sem apelo o Padeiro que recitar ao piano.

 

29) Organizar-se-á um calendário com os nomes de todos os grandes homens mortos, Haverá uma pedra para se escrever o nome do Santo do dia, nome que também será escrito na Ata, em seguida à data respectiva. 30) A “Avenida Caio Prado” é considerada a mais útil e a mais civilizada das instituições que felizmente nos regem, e, por isso, ficará sob o patrocínio da Padaria,

 

31) Encarregar-se-á um dos Padeiros de escrever uma monografia a respeito do incansável educador Professor Sobreira e suas obras.

 

32) A “Padaria” representará ao Governo do Estado contra o atual horário da Biblioteca Pública e indicará um outro mais consoante às necessidades dos famintos de idéias.

 

33) Nomear-se-ão comissões para apresentarem relatórios sobre os estabelecimentos de instrução pública e particular da Capital relatórios que serão publicados,

 

34) A Padaria Espiritual obriga-se a organizar, dentro do mais breve prazo possível, um Cancioneiro Popular, genuinamente cearense.

 

35) Logo que estejam montados todos os maquinismos, a Padaria publicará um jornal que, naturalmente, se chamará O Pão.

 

36) A Padaria tratará de angariar documentos para um livro contendo as aventuras do célebre e extraordinário Padre Verdeixa.

 

37) Publicar-se-á , no começo de cada ano, um almanaque ilustrado do Ceará contendo indicações uteis e inúteis, primores literários e anúncios de bacalhau.

 

38) A Padaria terá correspondentes em todas as capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água.

 

39) As mulheres, como entes frágeis que são, merecerão todo o nosso apoio excetuadas: as fumistas, as freiras e as professoras ignorantes.

 

40) A Padaria desejaria muito criar aulas noturnas para a infância desvalida; mas, como não tem tempo para isso, trabalhará por tornar obrigatório a instrução pública primada.

 

41) A Padaria declara desde já guerra de morte ao bendegó do “Cassino”.

 

42) É expressamente proibido aos Padeiros receberem cartões de troco dos que atualmente se emitem nesta Capital.

 

43) No aniversário natalício dos Padeiros, ser-lhes-á oferecida uma refeição pelos colegas.

 

44) A Padaria declara embirrar solenemente com a secção “Para matar o tempo” do jornal “A Republica”, e, assim, se dirigirá à redação desse jornal, pedindo para acabar com a mesma secção.

 

45) Empregar-se-ão todos os meios de compelir Mané Coco a terminar o serviço da “Avenida Ferreira”.

 

46) O Padeiro que, por infelicidade, tiver um vizinho que aprenda clarineta, pistom ou qualquer outro instrumento irritante, dará parte à Padaria que trabalhará para pôr termo a semelhante suplício.

 

47) Pugnar-se-á pelo aformoseamento do Parque da Liberdade, e pela boa conservação da cidade, em geral.

 

48) Independente das disposições contidas nos artigos precedentes, a Padaria tomará a iniciativa de qualquer questão emergente que entenda com a Arte, com o bom Gosto, com o Progresso e com a Dignidade Humana.

 

Amassado e assado na “Padaria Espiritual”, aos 30 de Maio de 1892.

 

Seguem-se as assinaturas dos padeiros presentes, em número de dezoito, faltando, portanto, duas assinaturas.

Fontes:

A Padaria Espiritual e o Simbolismo no Ceará – Sânzio de Azevedo, 1983;

Os Padeiros e Seu Periódico, edição fac-similar do O Pão, publicada em coedição pelas Edições UFC e ACL.

O OPERÁRIO, 1892 Dr. Castro Lopes

Presença da Padaria Espiritual na História da Imprensa e das Artes no Ceará – Luciana Brito

Fotos: Os registros iconográficos foram reproduzidos de originais pertencentes ao Arquivo Nirez, gentilmente cedidos.

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